Natal de 2005 - Um conto de verdade -
Andava eu pelas ruas num tamanho frenesi, atrapalhada com meus embrulhos, o braço doendo pelo peso das sacolas e as ruas... Ai, ai, essas ruas, que loucura! Estão carregadas de transeuntes, o ar com uma sintonia mórbida, olhares esquivos e atônitos. Uns pensando nos presentes de Natal, outros no vinho, na mesa, na missa do galo, na farra, na luta, no governo, no 13º salário, enfim... Outros no presente do amigo-oculto da empresa. É... esse ano a coisa está feia! Ainda bem que estipularam um preço pequeno para o presente...Ufa! E o turbilhão de personagens iam e viam no palco eloqüente das ruas enfeitiçadas pela magia comercial do Natal. Grandes Natais da humanidade... Ouvia-se os sussurros, os gritos espantados, as reclamações nas filas dos caixas das lojas, buzinas que representavam a pressa dos motoristas diante daquela senhora que, de bengala, se arrastava pelas ruas com passos lentos. Nossa, o asfalto estava fervendo e as cabeças idem. Eis que parei para relaxar e tomar uma água. Fui até o carro e deixei todas as sacolas e quando ia voltar para minha recaminhada. Como é? Recaminhada? É isso mesmo? É, é isso mesmo: Recaminhada (acabei de inventar) ! De dentro do carro, avistei duas perninhas pequenas balançando no ar. Eu pensei: O que é isso? Será mais uma invenção natalina? Não, não era uma invenção natalina. Era gente... um menininho que devia ter seus 2 ou 3 anos sendo achocalhado de maneira carinhosa pelo seu companheiro que devia ter seus 13 anos, acho... O pequeno tinha a pele morena clara, olhos verdes, com cabelos meio loiros, meio castanhos, mas lisos. Carinha linda tinha o moleque. O grande era mulato, sobrancelhas grossas, lábios grossos, olhos grandes e me pareciam sinceros. Também achei o menino mulato muito bonito. Os dois formavam uma dupla legal, "uma dupla dinâmica”. O menininho corria uns 3 metros e voltava correndo de novo. Jogava-se de cheio no colo do seu companheiro que ria bastante... A farra era grande. Sai do carro e ao me virar para trancar a porta ouvi uma voz bem baixinha dizendo: "Tia, tia, tem dinhelo? Tia, me dá dinhelo pa mim? Eu sorri e olhei para o molequinho bonito: - Ei, você aí, tá falando comigo? É você, rapazinho, que está me chamando de tia? Eu não sou sua tia, não... Ele saiu em disparada, sentou no colo do amigo que estava no chão e ficou me olhando espantado. Fui atrás dele, abaixei perto dos dois e olhei bem fundo em seus olhinhos e perguntei: - Diga aí, foi você que me chamou? Pode falar, eu não mordo... Apesar de estar vestida de preto, não sou bruxa não. Olha só o meu transporte: É carro, não é vassoura! - Você quer que eu faça o que? Eu não te ouvi direito e nem sei o seu nome. - Qual é o seu nome, menino? - É Tatá. - E Tatá é nome, hein? - É xim... Miu nomi é Tatá. - Então tá, Tatá. Então tá... - Você tem mãe, Tatá? - Xim. Tenho mãe, xim. Ela é gandi. - E onde ela está? - Na paia, ué! (Nós estávamos a um quarteirão da praia ou uma rua antes, como queiram.) **(Detalhe: as mãozinhas sujas e lindas batiam uma na outra, juntamente com os ombros para dizer que não sabia de nada. Que menininho lindo!) - E o que sua mãe está fazendo na praia? - Tá pegandu dinhelo, né? - Aaahhhh, dinheiro? Dinheiro é bom, muito bom! - Você também gosta de dinheiro? - Não, eu num gostu di dinhelo. To cansado. Eu num gostu de dinhelo...Nun gostu di dinhelo. Olhei para o seu companheiro e vi que ele não estava aprovando aquela conversa, principalmente pelo pequenininho dizer que não gostava de dinheiro. Senti seu olhar de reprovação para o baixinho. O baixinho colocou as mãozinhas no rosto, para se esconder, e virou as costas para parede. Eu voltei meus olhos para ele e disse: - Não fique bravo com ele... Ele é pequeno ainda. Deixe ele comigo. - Por que você está olhando feio pra ele? ... Vem cá, Tatá... Converse mais um pouquinho comigo...Ele não vai brigar com você, não. - Como é seu nome, hein grandão? - Rodrigo. - Nossa, você tem um vozeirão, hein Rodrigo...Podia ser locutor. É por isso que Tatá tem medo de você. Tens cara de mau. Diz o Rodrigo: - Tia, o que é que é locutor, hein? - Ah, é aquele cara que fala no rádio, faz anúncios, programas...Ele transmite programas de rádio ou televisão. Entendeu? - Sei, sei... disse o Rodrigo com cara intrigada. - E você, Tatá, você disse que não gostava de dinheiro, né? Você gosta de que, então? - Eu gostu di binquedu, di binquedu... Gostu di binquedu, binquedu, binquedu... - Ok, ok, ok, Tatá... Não precisa falar mais. Eu já entendi tudo... Você gosta de brinquedo. Então me diga, Tatá, quantos anos você tem? - Ele contou nos dedos, me apontou dois dedos e disse: Um. Colocou mais um dedinho e disse: Um, tia... um. - Ô, cara, que é isso? Você tá fazendo uma confusão danada comigo, Tatá. Eita! CARACA, mané! Como que você tem um + um e mais um e só tem um ano. Não são três anos, não? - Ahhhh , num xei...Num xei, num xei...num xei. - Socorro, Tatá! Você não sabe quantos anos tem? Vou desmaiar aqui. Que menino é esse? E você fica repetindo tudo, menino? Fala, fala, fala... Parece um papagaio, você! Ele começou a rir. Aliás, os dois riram muito com minhas palhaçadas. - Então fala você, Rodrigo: Quantos anos ele tem? - Tem três tia, três mesmo. Mas já vai fazer quatro. Tá pertinho do dia. Tá chegando, né Tatá? - Rodrigo, como é o nome dele de verdade? - Eu acho que é Carlos. A mãe chamava ele de Cacá, mas a Mariana, a irmã dele pequena, chamava ele de Tatá. E aí ficou Tatá. - Ahan, entendi... – Vocês não são irmãos? - Não, tia... Nós somos vizinho, só. - Tá bom Rodrigo... Gostei muito de conhecer vocês. Achei que vocês dois formam uma dupla muito legal, uma dupla mágica. Parecem o Tico e o Teco. - Não tia, isso não. - Ah, parecem o Tarzan e a Jane? - Não tia! Nãaaaoooooo - Parecem com o Gordo e o magro? Não, vocês dois são magros. - Parecem com o Mickey e o Pateta? - Não tia hahahahahaha . Que isso, tia? - Então: Ratinho e Tiririca! Jararaca e Ratinho! - Hahahaha. Não tia, isso não. Hahahahaha - Já sei: Então, então, então: Xazan a Xerife! - Nãaaaoooo, tia... Nem sei o que é isso. Xazan? - É, essa não foi boa... foi mal. (Cocei o queixo e pensei: tenho que inventar um nome legal). Já sei: Zezé de Camargo e Luciano. - Nâo , nós num que ser eles não. Nós gosta de Funk. - Então: Camargo e Camarguinho. (hahaha). O pequenininho, envolvido pela brincadeira e rindo bastante, começou a pular e a bater os bracinhos. Foi ai que percebi e fiquei meio triste com o que vi. As axilas dele estavam cheias de feridas. - Tia, nós num gostou dos nomes da dupra, não. Fala outro ai, disse o Rodrigo. - Ta bom, mas agora é o ultimo, tá? – Vamos lá: Batman e Hobin. - Eeeeeeeee, nós gostamu desse, tia. Desse ai nós gostamu. Tatá adora o Batman. Eu já estava um pouco cansada, mas me diverti também com a brincadeira. Perguntei: - Vocês estão sempre aqui nesse mesmo lugar? - Sim, nós num sai daqui não. Temu que arranjá cumida. Minha irmã e a mãe dele se junta e vão pra praia e deixam nós aqui todo dia. - Sei... mas eu nunca vi vocês por aqui. Passo sempre por aqui, mas hoje é a primeira vez que os vejo. - É que nós fica um pouco mais pra lá do Crube (ele queria dizer Clube). Dei a eles algum dinheiro, pouco, e resolvi voltar pra casa. Confesso que aquela conversa e tudo que passava por minha cabeça me deixaram triste. Me despedi e quando me virei, sem que eu percebesse, havia umas quatro pessoas olhando a cena. Sorri, acenei para as pessoas e entrei no carro. O rapaz que toma conta do estacionamento estava me ajudando a sair, quando fui obrigada a parar. O pequenininho, bem baixinho, no momento em que eu estava dando ré para sair com o carro, bateu na porta 3 vezes: toc, toc, toc.... Abri o vidro e ele disse: - Tia, Feliz Natal! - Tá, querido, eu voltarei, tá? Prometo que vou voltar... Me esperem que passo por aqui por esses dias. Antes do natal eu volto, podem esperar. Quando eu voltar, desejarei Feliz Natal. Agora ainda está cedo. Beijos! Quase ia me esquecendo. Abri o vidro novamente e falei: - Rodrigo, você disse que o Tatá vai fazer aniversário? Quando é? - É no dia 25, tia, mas num vai ter festa não. Amália Klopper - Meg - MEG KLOPPER
Enviado por MEG KLOPPER em 18/12/2005
Alterado em 18/01/2006 |