(Apesar do texto parecer pesado, vejam que a entrevista no final, além de esclarecedora é também divertida e emocionante, pois resgata a memória brasileira, muitas vezes esquecida e jogada às traças em "arquivos-mortos").
ENTREVISTA COM TIO ANTONIO S/ AS SOCIEDADES DISCIPLINARES (Destinada a pesquisa de Escolas e Universidades) A sociedade está se modificando. Nós todos estamos percebendo essas mudanças, logicamente de acordo com nossa maneira de ver as coisas. Vivemos, atualmente, na Sociedade do Controle, onde podemos ordenar e coordenar a nossa vida e nossa realidade, porém, acostumando-se, aos poucos, a essa estranha transição. Em nosso novo século vivemos a mercê da tecnologia desenfreada, de novos valores sociais, de novas conquistas desejadas. A família, como centro imperioso da formação do indivíduo, está organizada de forma diferente das famílias convencionais que tem um significado, uma definição, ou seja, a família é definida no dicionário Michaelis como – Conjunto de ascendentes, descendentes, colaterais e afins de uma linhagem. 2. O pai, a mãe e os filhos 3. Hist. Nat. Grupo sistemático, constituído pela reunião de gêneros afins. 4. Sociol. “Grupo de indivíduos, constituído por consangüinidade, ou adoção, ou por descendência dum tronco ancestral comum. 5. Conjunto de tipos com as mesmas características.” Seguindo meu raciocínio, e tomando por base o texto de Deleuze, dividiria o mesmo em: Sociedades Soberanas - Sociedades Disciplinares e Sociedades de Controle. Para melhor esclarecimento, a fim de entendermos sua origem, a razão da existência e a finalidade das mesmas, acho necessário que as sociedades sejam definidas: A cada um destes tipos de sociedades, determinadas por diferentes estratégias para alcançarem seus objetivos, correspondem a diferentes tipos de máquinas, conforme a seguir. SOCIEDADES SOBERANAS – sociedades de soberania em que o poder se fundava na ameaça de morte e na punição exemplar, ou seja, as pessoas eram ameaçadas com mortes ou punições, a fim de que atendessem as regras impostas. Às "sociedades de soberania" correspondiam às máquinas simples ou dinâmicas, que foram feitas para facilitar e agilizar o trabalho humano. Eram máquinas simples, alavancas, relógios, roldanas. SOCIEDADES DISCIPLINARES: As sociedades disciplinares" correspondiam às máquinas energéticas, Tem o seu início nos séculos XVII e XVIII, atingindo o seu apogeu nos princípios do século XX. Estas sociedades centram-se na organização de grandes meios de encerramento, pelos quais o indivíduo vai passando ao longo da sua vida, ou seja: a família, a escola, o quartel, eventualmente o hospital ou mesmo a prisão (meio de encerramento que serve de modelo a Foucault). A sociedade disciplinar é uma das inúmeras formas de organização social que o ser humano pode construir, sendo que sua forma de funcionar foi sendo aos poucos estabelecida. “A formação da sociedade disciplinar está ligada a um certo número de processos históricos, tais como: econômicos, jurídico-políticos e científicos. As pessoas na sociedade disciplinar podem ser submetidas, aperfeiçoadas e dominadas, o que permite uma maior forma de controle. Através da disciplina estabelece-se um mecanismo de poder, pelo qual se tem domínio sobre as pessoas, para que elas utilizem as técnicas necessárias ao objetivo da eficácia e da rapidez desejadas. Disciplina e Instituição estão sempre vinculadas à sociedade disciplinar. Sem as Instituições não tem como haver controle e elas se reproduzem de acordo com a necessidade que o ser humano tem de controlar, ou seja: prisão, hospitais, escolas (internatos), indústrias, famílias. As Sociedades Disciplinares, através das Instituições, transmitem a lei e também criam leis próprias de funcionamento, cerceando e vigiando o indivíduo em seus menores atos. Temos exemplos que vão do uso da caligrafia ao uso do esporte como formas de adestramento. Todos os detalhes dos movimentos corporais são percorridos. Escrever, por exemplo, só com a mão direita. Segundo o meu tio Antonio, o entrevistado, em sua época, os alunos eram obrigados a ter boa caligrafia. Do contrário, utilizavam cadernos de caligrafia, próprios para desenvolverem uma boa escrita e os professores avaliavam os conhecimentos, incluindo a letra como fator preponderante. Se esta fosse ruim, conseqüentemente as provas não teriam notas de acordo com o mérito do aprendizado. Há também o fato de terem que escrever com a mão direita. Os canhotos não podiam utilizar a mão esquerda, tinham que treinar até conseguirem serem “destros”. No meu caso, por exemplo, que sou canhota, fui obrigada, quando criança, a escrever com a mão direita, pois a professora amarrava (doida varrida de pedra, envolvida pelos conceitos arcaicos) minha mão esquerda na cadeira com um pano. Era um sofrimento..(Por conta disso, durante algum tempo, desenvolvi gagueira que só foi resolvida quando me tornei adulta). Quando da sociedade disciplinar, tínhamos os indivíduos indo da escola à caserna, da caserna à fabrica, situado “entre confinamentos” , tendo também suas personalidades mascaradas. As pessoas, naquela época, não tinham livre escolha. Assim como a empresa substitui a fábrica, a formação permanente tende a substituir a escola.”. As "sociedades disciplinares" estão destinadas a serem substituídas pelas "sociedades de controle", tal como, a partir do século XVII, substituíram as "sociedades de soberania".. SOCIEDADES DE CONTROLE: As "sociedades de controle" correspondem às máquinas cibernéticas e aos computadores. Desde os finais da 2ª Guerra Mundial, entramos na era das "sociedades de controle". Tais sociedades não funcionam num enclausuramento, mas num controle continuo e na comunicação instantânea. As sociedades de controle proclamam o fim das instituições de confinamento e o aparecimento de novos dispositivos de controle 'em redes a céu aberto', ou seja, o controle contínuo, simultâneo e descentralizado a partir de um sistema numérico de cifras e senhas. Neste novo regime a formação e trabalho são ininterruptos; a escola está dentro da empresa, a empresa também está dentro da escola e cada um fica em sua própria casa; as redes audiovisuais passam a desempenhar um papel estruturante na vida cotidiana. Mas, ao contrário de muitos “ciber-fanáticos” atuais, Deleuze não considera a sociedade de controle melhor que as antigas sociedades disciplinares. Para ele, o importante é descobrir formas de resistirmos a este novo poder, desde que nos seja prejudicial. A “Sociedade de Controle” com seus métodos tecnológicos modernos veio para ampliar o conhecimento pela comunicação das massas e, ao mesmo tempo, retificar as relações de poder da sociedade de consumo. Vivemos em uma sociedade onde estamos aprisionados às máquinas. Por um lado, a internet que veio diminuir a distância entre as pessoas, mas por outro, a escravidão aos computadores que nos confinam nos ambientes domésticos ou empresariais, não necessitando que saiamos às ruas para resolvermos o que antes precisávamos. A exemplo disso temos as senhas que nos identificam e nos tornam um número no mundo contemporâneo e representam, na verdade, novos modos de sujeição e controle da sociedade. Em contrapartida, vou abrir um espaço para relatar a entrevista que fiz com um parente, meu tio-avô, que me contou suas experiências, extremamente diferentes do mundo atual e, como tal, estava sujeito a sociedade disciplinar, que nos remete ao final do século XIX e início do Séx. XX. ENTREVISTADO: ANTONIO RIBEIRO DOS SANTOS FILHO Nascim.: 26/11/1916 Idade: 89 anos Natural de : Distrito Federal (Nota: O Distrito Federal mencionado por ele é o Rio de Janeiro) . Escolaridade: Superior Completo Formação: Advogado Primário: Colégio Pedro II do Rio de Janeiro Ginásio: 1º Ano ginasial – Ginásio de Goiás (devido a transferência do pai para Goiás, cursou parte do ginásio em Goiás, até o 3º ano). Restante do período Ginasial e Científico: COLÉGIO PEDRO-II DO RJ. (EXEMPLO DE SOCIEDADES DISCIPLINARES) _________________________________________________ - Discurso de Fundação da Escola - "O Colégio Pedro II vem do fundo do tempo, emerge da própria história social, política e cultural do país. A sua configuração física, seus currículos, sua metodologia, o conteúdo programático de suas disciplinas se modificaram, mas o seu ideal e os seus objetivos educativos continuaram tendo como lastro as palavras de seu fundador, Bernardo Pereira de Vasconcellos, inaugurando o 1º ano letivo: Até a década de 50, era designado “Colégio Padrão do Brasil”, visto que seu programa de ensino servia como modelo de educação de qualidade para os colégios da rede privada, que solicitavam ao Ministério da Educação o reconhecimento de seus certificados, justificando a semelhança de seus currículos aos do Colégio Pedro II. Nenhum cálculo de interesse pecuniário, nenhum motivo menos nobre, e menos patriótico, que o desejo de boa educação da mocidade, e do estabelecimento de proveitosos estudos, influiu na deliberação do Governo. Revela, pois, ser fiel a este princípio: manter e unicamente adotar os bons métodos; resistir a inovações que não tenham a sanção do tempo e o abono de felizes resultados; proscrever e fazer abordar todas as espertezas de especuladores astutos, que ilaqueam a credulidade dos pais de família com promessas de fáceis e rápidos progressos na educação de seus filhos; e repelir os charlatões que aspiram à celebridade, inculcando princípios e métodos que a razão desconhece, e muitas vezes assustada reprova. Que importa que a severidade de nossa disciplina, que a prudência, e a salutar lenteza com que procedermos nas reformas, afastem do Colégio muitos alunos? O tempo que é sempre o condutor da verdade, e o destruidor da impostura, fará conhecer o seu erro. O Governo só fita a mais perfeita educação da mocidade: ele deixa (com não pequeno pesar) as novidades, e a celebridade aos especuladores, que fazem do ensino da mocidade um tráfico mercantil, e que nada interessam na moral, e na felicidade de seus alunos. Ao Governo só cabe semear para colher no futuro". ________________________________________________ Nesse trecho da entrevista, meu tio mencionou com emoção que estudou com os melhores professores do Rio de Janeiro e não poderia deixar de lembrar o nome de alguns deles, ao qual tem profundo afeto e agradecimento por todos os valores morais, teóricos e práticos que, até hoje, enriquecem a sua vida e o seu cabedal de conhecimento. PROFESSORES: Antenor Nascentes José de Oiticia Henrique Dosor (Prefeito do RJ e Professor do Colégio Pedro-II) Adriano Del Peche Roberto Accioli Maubatan Raja Gabaglia. --------------------------------------------------------------------- FILIAÇÃO ANTONIO RIBEIRIO DOS SANTOS (pai) · Nasc: 09/03/1890 · Nacionalidade: brasileira · Naturalidade: Distrito Federal (RJ) · Atividades exercidas: a. Guarda Mor da Alfândega b. Diretor da Imprensa Nacional c. Ministro do Tribunal de Contas do Dist.Federal (RJ) CACILDA DA SILVEIRA SANTOS (mãe) · Nasc: 12/06/1895 · Nacionalidade: brasileira · Naturalidade: Distrito Federal (RJ) · Atividades exercidas: Do lar. Cuidava de toda a administração do lar, dos filhos, criados etc. · Escolaridade: Estudou durante muitos anos e possuia muita cultura (estudava com professores que lhe davam aula em casa), porém possuia um conjunto de conhecimentos, sem formação/denominação específica. Ela falava fluentemente ingles e francês. AVÓS PATERNOS: Augusto Justino dos Santos e Maria Lucia dos Santos. . Nacionalidade: Brasileiros AVÓS MATERNOS: José Silveira Alves e Brígida Januária da Costa . Nacionalidade: Portugueses da Ilha Terceira COMENTÁRIOS DIVERSOS FEITO PELO ENTREVISTADO: Fez um breve relato das condições das famílias do início do Século XX. Filho de uma família de classe média alta, teve educação esmerada e, por esse motivo, seus pais o obrigavam a ensinar os meninos necessitados da região em que morava e que não tinham condições financeiras. Ajudou, desse modo, a alfabetizar várias crianças, dentre eles o meu avô materno, ANTONIO DE SOUZA FERNANDES, filho de emigrantes portugueses e que se casou com a CLÉLIA DA SILVEIRA SANTOS (irmã do entrevistado e minha avó materna, com 86 anos) que se chama atualmente CLELIA DA SILVEIRA FERNANDES. (mãe de minha mãe). Seus pais tiveram 10 filhos no total, mas sobreviveram apenas 6. Informa que os recém-nascidos morriam, na maioria das vezes, de gastroenterite. Naquele tempo não havia o simples “Soro caseiro” que ajuda a salvar vidas. As crianças eram acometidas de diarréias agudas e morriam. As vezes chegavam a completar mais de 1 ano de idade. Dos irmãos que sobreviveram, são eles: * CLÉLIA DA SILVEIRA FERNANDES (minha avó que está viva) - Nascida em 1920 * MARIALVA DA SILVEIRA SANTOS (minha tia – falecida) – nascida em 1922. * ORESTES RIBEIRO DOS SANTOS (meu tio – Falecido) * WASHINGTON LUIZ RIBEIRO DOS SANTOS (meu tio que está vivo – 69 anos) *JOSÉ PAULO DE OLIVEIRA (Meu tio – FILHO ADOTIVO – Já falecido) Os médicos atendiam em casa. As farmácias, escritas com “ph” (Pharmacias) faziam os remédios, ou seja, eram manipulados através das fórmulas receitadas pelos médicos ou mesmo pelos farmacêuticos que possuiam licença para o exercicio da profissão). Existiam alguns medicamentos prontos apenas para causas corriqueiras, como: dor de dente, dor de barriga, dor de cabeça etc. As gripes eram tratadas com escalda-pés e muitos chás caseiros. Aliás, os chás caseiros, eram os medicamentos mais utilizados. As empregadas conheciam as ervas e colhiam diretamente no mato, como diziam. OS SOBRENOMES O sobrenome dos filhos homens, geralmente era do Pai. O sobrenome das filhas mulheres era o da mãe. Isso para os nomes do meio, pois o último sobrenome sempre era o do pai. EDUCAÇÃO A educação escolar dos homens era mais preocupante do que a das mulheres. As mulheres bastava o primário... O importante era que fossem prendadas e prontas para o lar. Usou um termo assim: "As mulheres tinham apenas um patrão: O MARIDO". Nota da autora: "Odiei isso" PASSEIOS E LAZER: Quando crianças todos os passeios externos eram feitos em companhia dos pais. Quando crescidos, os homens tinham uma certa liberdade para sair sozinhos, mas tinham que obedecer o horário da casa para dormirem. As mulheres não podiam sair sozinhas, apenas acompanhadas de sua mãe, quando fosse de dia. A noite apenas em companhia da família, do pai ou do irmão mais velho. Quando as mulheres arranjavam namorado, eram vigiadas o tempo todo. Não podiam ficar a sós com seus pretendentes. Conta o meu tio que sua irmã Marialva arranjou um namorado muito esperto. Para ficar sozinho com a namorada, num belo dia em que teve autorização para passear com ela, a tarde, e em companhia de seu irmão mais velho, ofereceu dinheiro alto para que ele comprasse umas revistas. Ele demorou para voltar, uma vizinha viu a cena e contou para o seu pai que o esperou em casa com um cinto na mão. Foi salvo por minha avó Clélia que, segundo ele, era uma linda moça, era uma pintura... Ela se colocou na frente dele e disse que queria apanhar também. O problema era que não era ela que estava namorando, mas sua irmã Marialva. Segundo o meu tio, a vovó Clélia era linda e uma bela dançarina. Eles dançavam muito juntos e chagaram a ganhar troféus. Há também uma outra observação feita por ele que deixei de mencionar aqui, ou seja, reportando-se ao tema da entrevista, disse: “As Sociedades disciplinares e as Sociedades de Controle tem sempre o poder de conter e moldar os seres humanos, mas o maior poder do ser humano é o pensamento, porque este é livre’. Bem, o tio ANTONIO, a quem eu muito estimo e admiro em face de sua energia e sabedoria, terminou seu relato com pesar, no já adiantado da hora, falando a seguinte frase: “Belos tempos que não voltam mais. Queria ter a mesma jovialidade, mas com a experiência que tenho hoje”. Agradeço muitíssimo ao tio querido e espero que ele dure muitos anos, a fim de me propiciar belos momentos como foram esses ao longo da entrevista. Estou maravilhada com tudo que ouvi e que aprendi. Percebi em seus olhinhos azuis e em seus alvos e poucos cabelos, a sensibilidade e a humildade de um ser humano grande e sábio e que muito me orgulha por ser sua sobrinha-neta. Percebi ainda, que as sociedades disciplinares não foram ruins para a sua educação e seu desenvolvimento. Ao contrário, formaram um grande homem. Quem dera que valores como os que me foram apresentados por ele, fossem hoje resgatados pelo Brasil e pudéssemos viver numa sociedade mais justa e nunca numa sociedade excludente. MEG KLOPPER
Enviado por MEG KLOPPER em 18/11/2006
Alterado em 18/11/2006 |